A Colecção Mil Folhas
Quarta-feira, 24 de Julho de 2002
"Se Numa Noite de Inverno Um Viajante", de Italo Calvino, É o Livro Que Se Segue na Colecção Mil Folhas
"Se Numa Noite de Inverno Um Viajante", de Italo Calvino, É o Livro Que Se Segue na Colecção Mil Folhas
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"Se Numa Noite de Inverno Um Viajante", publicado em 1979, assinala um regresso vigoroso e audaz de Italo Calvino (1923-1985) à escrita, após uma paragem de sete anos, e ao mesmo tempo, o término de um excepcional percurso literário, com um romance sobre o prazer da leitura. Nesta obra labiríntica de carácter experimental, existem dez princípios de romances distintos entre si, conectados pelo fio condutor de uma história posterior que, através das aventuras de um Leitor e de uma Leitora, nos conduz de uma para outra dessas partes iniciais que tinham sido interrompidas. O sentimento de frustração que Calvino maliciosamente confere ao Leitor e à Leitora, quando confrontados com a interrupção súbita das histórias, passa igualmente a ser a do leitor comum. M.T.S.
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A leitura sem fim
(publicado em 22/08/1999)Romance de Italo Calvino põe o leitor no centro da cena
RINALDO GAMA
Especial para a Folha
Vai sem dizer que a literatura só se realiza plenamente quando encontra o leitor. No entanto, ao contrário do que seria razoável imaginar, raras vezes ele é chamado à frente da cena ficcional. Publicado na Itália em 1979, traduzido no Brasil em 1982 e agora relançado por aqui em nova tradução, "Se um Viajante numa Noite de Inverno", romance de Italo Calvino (1923-1985), é talvez o mais bem-sucedido esforço de valorização do leitor em uma obra literária.
Isso por uma razão simples. Nesse "hiper-romance", o leitor é simplesmente o protagonista. Tudo se resume ao significado dessa peça fundamental da engrenagem narrativa, espécie de "única realidade" que restaria ao romance depois de concluído o ato de escrevê-lo. Assim, não seria despropositado classificar o livro de Calvino, escritor de língua italiana nascido em Cuba, como uma obra realista. Um realismo, claro, baseado no "fingimento" de que falou Fernando Pessoa.
"Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, 'Se um Viajante numa Noite de Inverno'", anuncia o autor logo na primeira linha. A frase, como ocorre com toda grande obra, contém o livro inteiro. O que se lerá dali por diante será isso: inícios de romances. Borgianamente, Calvino --que participou do "Ouvroir de Littérature Potentielle" (Oulipo), grupo de experimentações lítero-matemáticas fundado por Raymond Queneau e do qual fazia parte Georges Perec-- afirmava que "todo livro nasce na presença de outros livros". Por um erro da editora, o exemplar de "Se um Viajante numa Noite de Inverno" do personagem Leitor tem um defeito a partir da página 32, o que o leva a se dirigir à livraria para tentar trocá-lo. Lá ele recebe um novo volume e descobre que a história nada tem a ver com aquela cuja leitura havia iniciado. No final, o Leitor, e o leitor de verdade também, terá começado dez romances --com referências a Plotino, de um colecionador de caleidoscópios--que, por motivos alheios a sua vontade, não conseguirá terminar de ler.
Num século marcado pela metalinguagem nas artes, o metalinguístico "Se um Viajante numa Noite de Inverno" consegue o prodígio de se destacar por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque confunde o leitor real com o personagem Leitor, sem que, por exemplo, o volume que está nas mãos do primeiro apresente o tal defeito na página 32 (embora ele esteja, efetivamente, nela). O outro motivo: apesar da afiada ironia e do irresistível humor com que Calvino desfila tipos de romances, possibilidades de crítica e leitura, para não falar do deboche que reserva a certas atitudes dos círculos acadêmicos e editorais, é evidente que "Se um Viajante numa Noite de Inverno" revela o seu gosto pela reflexão literária. No fundo, ele funciona como um ensaio prático.
Nesse sentido, o romance seria, de certa forma, a versão ficcional do que se convencionou chamar de estética da recepção. Tal corrente --cuja certidão de nascimento é uma conferência de Hans Robert Jauss proferida na Universidade de Constança, Alemanha, no dia 13 de abril de 1967-- empenha-se em deslocar o centro da crítica literária do autor ou do contexto social para o leitor. Como faz o romance de Calvino.
Do mesmo modo que não foram Jauss nem Wolfgang Iser e sua teoria do efeito estético os teóricos que pela primeira vez pensaram no leitor --José Paulo Paes, num texto publicado nesta Folha em 1989, chamava a atenção para o trabalho precursor de Kenneth Burke, nos anos 30--, é óbvio que outros romancistas além de Calvino destacaram os seus receptores (lembre-se de Machado). Entretanto jamais aquela figura capaz de fazer com que um livro deixe a condição de "ser morto" --como uma pedra-- para se transformar num "ser vivo" foi elevada a tamanho grau de importância, satisfatoriamente, numa obra literária.
No fim de "Se um Viajante numa Noite de Inverno", Calvino escreve que, no passado, o sentido último de todos os relatos tinha duas faces: a continuidade da vida e a inevitabilidade da morte. Sem pejo de se apresentar como uma realidade romanesca, "Se um Viajante numa Noite de Inverno" realiza-se no mundo real, transformando, como se disse antes, os leitores --o concreto e o fictício-- num mesmo indivíduo. Isso acaba permitindo que a continuidade da vida se imponha à inevitabilidade da morte. "Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só ela nos pode dar", escreveu Calvino em "Seis Propostas para o Próximo Milênio". Sua obra-prima é a maior prova de que ele estava certo.
Rinaldo Gama é professor de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenador do Instituto Moreira Salles e autor de "O Guardador de Signos" (Perspectiva/IMS).
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Se Um Viajante Numa Noite De Inverno
(Italo Calvino)
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As estações são todas parecidas; pouco importa se as lâmpadas não clareiam além de seu halo impreciso, afinal, você conhece de cor esse ambiente ? o cheiro de trem que permanece mesmo depois de todos os trens terem partido, o cheiro particular que fica após a partida da última locomotiva. As luzes da estação e as frase que você lê parecem mais incumbidas de dissolver as coisas do que de mostra-las, tudo emerge de um véu de obscuridade e névoa. Esta noite desembarquei pela primeira vez nesta estação e já me parece que passei aqui a vida toda, entrando e saindo deste bar, passando do cheiro da plataforma ao da serragem molhada dos banheiros, tudo misturado num cheiro único que é o da espera, o cheiro das cabines telefônicas quando só nos resta recuperar as fichas porque o número chamado não dá sinal de vida.
Sou o homem que vai e vem entre o bar e a cabine telefônica. Ou melhor: o homem que se chama ?eu?, a respeito do qual você nada sabe, assim como esta estação se chama apenas ?estação? e fora dela não existe nada além do sinal sem resposta do telefone que toca num quarto escuro de uma cidade distante. Recoloco o fone no gancho, aguardo o ruído de ferragem descer pela garganta metálica, volto a empurrar a porta envidraçada e sigo em direção à pilha de xícaras postas para secar numa nuvem de vapor.
Em resumo, se você me chama de sedutor, isso passa; de adulador, também passa; de feirante, até isso passa; mas, se me chama de inconsciente, aí me sinto ofendido! Se no Viajante eu quis representar (e alegorizar) o envolvimento do leitor ( do leitor comum) num livro que nunca é o que ele espera, apenas explicitei aquela que foi minha intenção consciente e constante em todos os livros anteriores. Aqui se abriria um discurso de sociologia da leitura (ou melhor, de política da leitura) que nos afastaria da discussão sobre a essência do livro em pauta.
Sou o homem que vai e vem entre o bar e a cabine telefônica. Ou melhor: o homem que se chama ?eu?, a respeito do qual você nada sabe, assim como esta estação se chama apenas ?estação? e fora dela não existe nada além do sinal sem resposta do telefone que toca num quarto escuro de uma cidade distante. Recoloco o fone no gancho, aguardo o ruído de ferragem descer pela garganta metálica, volto a empurrar a porta envidraçada e sigo em direção à pilha de xícaras postas para secar numa nuvem de vapor.
Em resumo, se você me chama de sedutor, isso passa; de adulador, também passa; de feirante, até isso passa; mas, se me chama de inconsciente, aí me sinto ofendido! Se no Viajante eu quis representar (e alegorizar) o envolvimento do leitor ( do leitor comum) num livro que nunca é o que ele espera, apenas explicitei aquela que foi minha intenção consciente e constante em todos os livros anteriores. Aqui se abriria um discurso de sociologia da leitura (ou melhor, de política da leitura) que nos afastaria da discussão sobre a essência do livro em pauta.
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Sexta-feira, 29 de Junho de 2007
Italo Calvino
Italo Calvino 1923-1985
De novo uma surpresa latina.
Ítalo Calvino é um nome bastante conceituado no mundo da literatura e é, sem dúvida um homem que gosta de livros. È uma daquelas pessoas que gostaríamos de ter tido como mestre ou professor e que sabemos que ao ouvi-lo estamos a aprender muito mais do que a história deixou para trás. Ele faz a história.
O livro narra a história do leitor (eu) que comprou o último livro de Ítalo Calvino, “Se Numa Noite de Inverno Um Viajante”, e que quando chega a melhor parte do livro, este inicia-se com um segundo capítulo de uma outra história que nada tem a ver com o primeiro. Ao chegar à livraria para reclamar, o leitor (ele) encontra Ludmilla, uma leitora que se queixa do mesmo problema. Descobrem então que o segundo capítulo não foi escrito por Calvino, mas por um autor Polaco. Intrigados iniciam a leitura do novo livro para descobrir, posteriormente, e outra vez incompleto na melhor parte da história, que o livro não é polaco, mas cimério. A busca continua, e os dois protagonistas são envolvidos em conflitos políticos, um repórter desaparecido que iniciou uma demanda em busca do romance perfeito, sociedades secretas que disputam a hegemonia dos princípios literários e mais um cem número de coisas. Na realidade existem dez histórias inacabadas, mais uma que as interliga. Por fim descobre-se que… não, não vou contar.
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“Se Numa Noite de Inverno Um Viajante” é um dos melhores livros que já li. E a melhor forma de o descrever é a explicação que dei a um amigo há algum tempo: “Quanto tempo levas a ler um livro destes? Uma semana? Duas? Então imagina uma performance sexual de duas semanas, na qual não consegues atingir o orgasmo, porque no momento fulcral, algo te distrai de modo que tens de recomeçar tudo de novo.” Dá cabo de uma pessoa, não dá?
publicado por ikaros às 17:01
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http://ikaros.blogs.sapo.pt/
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