Tempo em Setúbal

domingo, 17 de outubro de 2010

Dois poemas de Cesário Verde





Nós
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 I
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Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!
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Cristalizações
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Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua,

Como as elevações secaram do relento,
E o descoberto Sol abafa e cria!
A frialidade exige o movimento;
E as poças de água, como um chão vidrento,
Refletem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra - que união sonora! -
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. Os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria:
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exato.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me o fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo,
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim a bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas mão gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A atriz que tanto cumprimento
E a quem, à noite na platéia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições , o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a atrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na sangüínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!
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O Livro de Cesário Verde - Wikisource

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Ilusionismo Quadrilátero

ILUSIONISMO
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* Victor Nogueira .
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Ele há um tempo p’ra tudo na vida
Cantando hora, minuto, segundo;
Por isso sempre existe uma saída
Enquanto nós estivermos neste mundo.
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Há um tempo para não fenecer
Há mar, sol, luar e aves com astros
Há uma hora p'ra amar ou morrer
E tempo para não se ficar de rastos.
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P'ra isso e' preciso sabedoria
Em busca dum bom momento, oportuno,
Com ar, bom vinho, pão e cantoria,
Sem se confundir a nuvem com Juno.
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1991.08.11 - SETUBAL