2011-03-25
Tenho a casa cheia de lírios. Acontece que os lírios e eu nunca fomos amigos íntimos. Para mim, lírios eram apenas aquela flor que costumava entrar sempre nas histórias do Zé Gomes Ferreira, à mesa do Monte Carlo (que então nem sonhava que um dia viria a chamar-se Zara).
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Na sua juventude, o Zé Gomes Ferreira tinha publicado uma colectânea de bucólicos poemas, a que chamara "Lírios do monte". Anos mais tarde, num passeio ao campo com um amigo, umas flores chamaram-lhe a atenção: "que bonitas! Que flores serão aquelas?" E o amigo respondeu: "então, são os lírios do monte de que tu falaste tanto no teu livro..."
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O Zé Gomes contava isto muitas vezes, e ria muito, e nós ríamos com ele, e ele dizia-me, a mim, jovem a tentar entrar naquele mundo privilegiado, "nunca escrevas sobre aquilo que não conheces! Lembra-te sempre da vergonha dos meus lírios...".
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Foi lição que nunca esqueci.
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Mas voltando aos lírios.
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Sempre me pareceram flores tristes, daquelas que se mandam para aos funerais, tombando ao peso das faixas de "saudade eterna".
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Por isso quando há dias cheguei a casa e encontrei à minha porta um ramo gigantesco de lírios - os meus vizinhos são gente honesta, nunca me roubam as flores que tantas vezes se estendem pelo patamar à minha espera...- até me senti mal.
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Mas as palavras do amigo que as mandara reconciliaram-me com elas. Garantia ele - que sabe tudo sobre flores, e tem o dom de adivinhar quando eu preciso delas mais que de remédios - que os lírios são as flores da Primavera.
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E rematava:
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"És como o Zé Gomes. Não percebes nada de lírios"
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E ali fiquei, parada no patamar, os lírios aos meus pés, chaves na mão e a tentar atinar com a fechadura, e a rir como há muito tempo não ria - e o meu riso a misturar-se com o riso do Zé Gomes, de repente tão vivo, e com o riso do Carlos, e com o riso do Mário, e com o riso do Abelaira, e com o riso de todos nós à mesa do Monte Carlo.
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Todos, de repente, tão vivos.
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E foi assim que a Primavera entrou, finalmente, em minha casa.