Morreu Álvaro Cunhal |
Criado segunda-feira, 13 de Junho de 2005 | Última actualização quarta-feira, 15 de Junho de 2005 |
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Por Torcato Sepúlveda . A ficção de Cunhal/Tiago entre a lucidez e a missa ideológica Por Adelino Gomes 14.06.2005 Álvaro Cunhal foi talvez o único dirigente importante do comunismo internacional que cultivou a ficção. Mais uma singularidade deste homem singular. |
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É claro que não escreveu romances, novelas e contos com o objectivo de criar um mundo, como acontece com a generalidade dos romancistas, mas para testemunhar um mundo que ele conhecia bem: o dos revolucionários profissionais leninistas, que procuravam derrubar o fascismo e o capitalismo.
A literatura de Álvaro Cunhal tem fins pragmáticos: explicar ao povo e aos militantes do Partido Comunista Português (PCP) qual devia ser o comportamento dos revolucionários na clandestinidade e perante a polícia política.
Ora, enquanto este objectivo teve razão de ser, as obras ficcionais de Cunhal atingiram níveis de qualidade acima da média; quando, depois da revolução do 25 de Abril de 1974, o então secretário-geral do PCP prosseguiu a sua aventura literária, a qualidade decresceu, como se ele adivinhasse, mas não quisesse ou pudesse admiti-lo, que aquele tipo de literatura era inútil. A complexidade temática do romance Até Amanhã, Camaradas e do conto Cinco Dias, Cinco Noites, o carácter multifacetado das suas personagens, estão aí para prová-lo. Os títulos posteriores são de uma banalidade estilística confrangedora.
Em Até Amanhã, Camaradas e em Cinco Dias, Cinco Noites há muita missa ideológica, muita predicação pedagógica; mas há também personagens contraditórias e ambíguas que evoluem numa realidade semovente. Isto é, o mundo - quer o grande mundo, quer a sociedade restrita e fechada dos clandestinos - não é pintado a preto e branco. Este romance e este conto pretendem ser - e são - o catálogo completo das situações que os revolucionários profissionais enfrentavam no Portugal salazarista.
Com a leitura de Até Amanhã, Camaradas ficamos a saber quase tudo, desde como se preparavam e realizavam greves e manifestações operárias e camponesas, até como devíamos comportar-nos nos interrogatórios da PIDE, passando pela forma de montar uma casa clandestina e pela maneira de conseguir fundos dos simpatizantes. Faltava, no entanto, uma situação que, por necessidade narrativa ou esquecimento, o autor deixara de lado: a passagem ilegal de fronteiras. Falha colmatada em Cinco Dias, Cinco Noites.
A influência do realismo americano
Se os dois livros fossem apenas isto, teriam interesse sociológico e histórico evidente, e ponto. Acontece, porém, que há mais, bastante mais. A personagem Ramos, de Até Amanhã, Camaradas, é tão rica em contradições que o autor acaba por matá-la para que a narrativa prossiga. O seu desejo é tão vivo, tão anárquico que tanto as mulheres na rua como as camaradas nas casas clandestinas caem sob o charme deste homem alegre e dominador. O partido critica Ramos por ele dormir com a mulher de um legionário, nem sequer tomando cautelas de segurança mínimas; Ramos aceita a crítica com dificuldade. Mas que diria o partido - se soubesse, pois não sabe - que ele está prestes a dormir com a camarada Maria, companheira de outro funcionário? Antes que o partido saiba, Cunhal fá-lo tombar assassinado pela PIDE.
Em Cinco Dias, Cinco Noites, o militante que se prepara para atravessar a salto a fronteira é o seu tanto ingénuo e desconhecedor das coisas da vida; Cunhal coloca-o frente ao passador Lambaça, tipo áspero, gozão, sarcástico. Os militantes são enfiados na tina cheia de água suja da realidade contraditória.
É extraordinário, no entanto, que esta muito lúcida visão do mundo seja sistematicamente acompanhada de uma espécie de missa ideológica, durante a qual os padres partidários proferem homilias que já na altura deveriam ser insólitas em qualquer país civilizado. A crítica às mulheres vistosas é a mais ridícula. Certas personagens e o narrador não se limitam a sustentar - o que seria de certa forma defensável - que uma mulher espampanante se torna visível para toda a gente, inclusive para a polícia. Não. Há que fazer a defesa absolutista das mulheres sérias, discretas, modestas. Salazar não diria coisas diferentes.
Esperar-se-ia que literariamente Álvaro Cunhal estivesse preso aos cânones do realismo socialista soviético. É falso. Se alguma influência estética se nota nestes dois livros é a do realismo norte-americano, de John Steinbeck, de Ernest Hemingway, e sobretudo de Erskine Caldwell.
A chapa de zinco que atravessa a estrada em frente do funcionário político Vaz, em dia de grande tempestade, logo no início de Até Amanhã, Camaradas, é sintomática desse estilo. A cena da manifestação reprimida do mesmo romance é das mais cinematográficas da literatura portuguesa. Um homem baixo e cheio que surge de noite num pinhal e parece alto e elegante demonstra a grande visualidade desta criação romanesca. Não será por acaso que os dois livros foram requisitados pelo cinema português: José Fonseca e Costa adaptou Cinco Dias, Cinco Noites [e Até Amanhã, Camaradas foi realizado por Joaquim Leitão e exibido este ano como mini-série televisiva na SIC].
O resto da obra romanesca de Álvaro Cunhal apresenta escasso valor literário. A Estrela de Seis Pontas tem este interesse limitado: o escritor mergulha no ambiente dos presos de delito comum, gente com quem se cruzou na cadeia enquanto preso político. Um caldo deslavado de bons sentimentos e de moralismo mais ou menos bem intencionado. A Casa de Eulália provocou curiosidade, pois a acção passa-se em Espanha, durante a Guerra Civil, em que Cunhal participou não se sabe a fazer o quê. A estória é fraca e a versão da História oficialmente estalinista. Ou Álvaro Cunhal - que como ficcionista foi quase sempre autobiográfico - andou lá a fazer nada, ou não conta o que andou lá a fazer. Fronteiras, Um Risco na Areia, Sala 3 e Outros Contos, Os Corrécios e Outros Contos, Lutas e Vidas - Um Conto são já o retomar penoso de episódios incluídos nos dois primeiros títulos do autor, como se plagiasse a própria obra.
Em 1994, Cunhal declarou, em conferência de imprensa, que era Manuel Tiago, sob cujo pseudónimo assinara - e continuou a assinar - a sua obra romanesca. Toda a gente já sabia que Manuel Tiago era ele. Porquê denunciar este segredo de Polichinelo quando a sua ficção decrescia de qualidade? São ínvios os caminhos da autoria individual.
Álvaro Cunhal foi um homem cultíssimo. Desde a análise literária (defendeu na juventude o realismo socialista contra José Régio, sob o pseudónimo de António Vale - eis um pseudónimo que nunca assumiu - e publicou A Arte, o Artista e a Sociedade) até às artes plásticas (ilustrou o livro Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e estão editados os seus Desenhos da Prisão), passando pela investigação histórica (As Lutas de Classes em Portugal Nos Fins da Idade Média), tocou quase todas as teclas do piano.
A História foi-lhe madrasta. A História lá teria as suas razões. Ficará o melhor, a lucidez: "Assim começou Afonso a sua vida de funcionário do Partido. Receber malas e embrulhos. Separar imprensa. Fazer pacotes. Guardar malas. Enrolar guitas. Receber novos pacotes. Esperar comboios. Esperar camionetas. Fazer tempo em sítios descampados. Tomar o comboio. Receber embrulhos. Passar dias inteiros sem nada que fazer. Esfalfar-se outros dias numa dobadoira de madrugada a madrugada. Não dormir umas noites. Dormir depois dias inteiros. Sempre a mesma coisa, monótona, aborrecida, sem qualquer interesse."
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