Tempo em Setúbal

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Até Amanhã, Camaradas - Manuel Tiago



Eduardo Cintra Torres
Manual do Militante e Epopeia do PCP

O romance "Até Amanhã, Camaradas", de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, é antes do mais um documento histórico. Relata a vida interna do PCP nos anos difíceis da Segunda Guerra Mundial, em torno das lutas populares que organizou no vale do Tejo em 1944.
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Retrata a realidade pelos olhos de um interveniente nos acontecimentos, depois secretário-geral do PCP, urdindo capazmente uma teia de personagens numa trama colectiva com inúmeros episódios. 
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É por esse lado que o primeiro romance de Cunhal cativa como texto transponível para o ecrã. Apesar do estilo desinteressante e "kitsch", Cunhal construiu uma narrativa credível. Manejou as personagens do mesmo modo que, como secretário-geral, dominou a estrutura de alto a baixo do partido. O romance é um organograma em movimento. O êxito do livro é em parte consequência do êxito político do PCP. Sobrevivendo ao fascismo e às cisões, o PCP chegou até hoje, reclamando para si muita da oposição ocorrida em décadas de fascismo. Sem o diminuir, pode dizer-se que esse palmarés é exagerado. Além das pequenas oposições "burguesa", republicana, maçónica ou católica, houve um importante movimento à esquerda do PCP a partir dos anos 60. E houve, também, um forte movimento anarquista até aos anos 30, hoje quase ignorado histórica e até literariamente. O silêncio que cobre as outras oposições estende-se por osmose a ficções igualmente importantes enquanto documentos históricos e melhores literariamente do que "Até Amanhã, Camaradas", como "O Arcanjo Negro", de Aquilino Ribeiro, "A Lã e a Neve", de Ferreira de Castro, e outras páginas de ficção atravessada pela política em Rodrigues Miguéis, Paço d'Arcos, Branquinho da Fonseca, Manuel da Fonseca, Torga, Sena e outros. Esse passado histórico e esses romances apagam-se na memória e os romances de Cunhal sobrepõem-se-lhes porque, ao contrário do que se costuma ler ou dizer, Cunhal é um vencedor da História. Se tivesse desaparecido do palco, "Até Amanhã, Camaradas" seria apenas fonte histórica especializada. .
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Antes de passar à série televisiva co-produzida pela SIC (28 e 29/01), convém situar "Até Amanhã, Camaradas". Trata-se de um livro singular. O protagonista é colectivo e chama-se "PCP". A narrativa centra-se nos militantes clandestinos e nos seus problemas políticos, pessoais e de segurança. Como se comportam se passam à clandestinidade? Como vivem nas "casas de apoio"? Como se portam se são presos? Outro tema central é a (re)organização do PCP. Quais as preocupações dos clandestinos na ligação entre as estruturas de base, as intermédias e o Comité Central? Quais os tipos de militantes que se encontram? Os que falam e não fazem nada, os problemáticos, os voluntaristas, os totalmente dedicados à causa? Quais as tarefas importantes? Distribuir a imprensa? Participar nas reuniões? Organizar greves? Como fazer o PCP crescer, que é o objectivo principal? A trama narrativa serve para responder a estas questões. Quem julga que "Até Amanhã, Camaradas" é um romance sobre lutas populares engana-se redondamente. Cunhal escreveu um romance sobre o PCP e para o PCP. É uma espécie de manual de clandestinidade para os seus camaradas aprenderem as regras internas do partido. Em vez de textos maçudos para "O Militante", o jornal interno do PCP, Cunhal forneceu-lhes uma estória escorreita e até empolgante, povoada de dirigentes e militantes de base em acção. A estrutura do romance, que a série da SIC muito bem reproduziu, revela o quanto este é um livro sobre o PCP. As fases da narrativa são as três da intriga mínima: a) situação inicial estável de sobrevivência do partido e aproveitamento das privações de operários e camponeses; o PCP procura reforçar-se capitalizando o descontentamento popular; b) na parte central do romance, o PCP lidera greves e manifestações que apanham as autoridades desprevenidas: é um sucesso político do PCP, mas logo seguido de brutal repressão; c) a este estado de desequilíbrio seguem-se o esforço e corroboração da reorganização do PCP, levada a bom termo, regressando-se a um estado semelhante ao inicial, mas melhor para o PCP segundo a versão de Cunhal. "Happy end". Na estrutura e na narrativa, as lutas populares são pretexto para o PCP se fortalecer e para se provar que a reorganização de Cunhal era correcta. Os métodos conspirativos e clandestinos e a nova estrutura organizacional são legitimados e explicados minuciosamente. As massas populares são tão-só um pano de fundo de parte do romance, com pouco interesse. Em "Até Amanhã, Camaradas", o povo serve para validar o PCP e serve para o PCP regressar reforçado da repressão e da reorganização. "Até Amanhã, Camaradas" não é um elogio da personagem colectiva povo ou operários e camponeses unidos. É um elogio e um manual do PCP e do "centralismo democrático", isto é, das regras internas que ainda hoje governam o partido de Cunhal. Romance de tese, didáctico e escrito num estilo realista apagado, usa a potencialidade com que o género romance mostra um mundo amplo e concreto para transmitir em narrativa a ideologia e instruções do seu autor. Mas "Até Amanhã, Camaradas" tornou-se também, com o tempo, uma epopeia do PCP, o passado épico absoluto do partido, um grande fresco narrativo com inúmeros heróis entre o humano e o divino agindo numa polifonia romanesca que conduz sempre ao objectivo de elucidar militantes e promover o "centralismo democrático".  
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Se o protagonista do romance é o PCP, as três personagens secundárias dominantes são Vaz, Ramos e Maria. Vaz é o militante profissional totalmente dedicado ao partido, sem tempo a perder com a alegria de viver. Ramos é igual, mas com a alegria que falta a Vaz. O lado austero e monomaníaco, quase maquinal, de Vaz tem levado a escrever-se que se trata de um "alter ego" de Cunhal. Mas poderá ver-se também em Ramos outra projecção de Cunhal, um "self" que o Cunhal real quereria igualmente mostrar mas não poderia por achá-lo incompatível com a sua política. (Continua. Até amanhã, leitores.)
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http://static.publico.clix.pt/tvzine/critica.asp?id=3102
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Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal)

Até amanhã, Camaradas

Col. Resistência, Edições Avante


            Com o nome de Manuel Tiago foi publicado este livro Até amanhã, Camaradas. Era um nome completamente desconhecido, não identificado. Aliás, o livro abre com uma nota sobre este misterioso autor:

                “O original dactilografado do romance, Até amanhã, Camaradas, foi encontrado junto de outros originais, num arquivo formado, no decurso dos anos, ao sabor dos incidentes e de acidentes, na vida agitada daqueles mesmos dos quais o romance dá alguns exemplos típicos.
            Desconhece-se quem é o autor. O único exemplar encontrado não tem assinatura.
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            Só, numa pequena folha apensa e apagada, podia ler-se, em rabisco apressado, o nome Manuel Tiago, pseudónimo de certeza.
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            Foram consultadas pessoas que poderiam dar eventualmente indicações conduzindo a uma identificação. Sem resultado. O autor fica assim merecendo o título de “homem sem nome”, tal como as personagens do romance.»

            Só depois da queda da ditadura se desvendou o mistério e se identificou o autor, como sendo Álvaro Cunhal, a figura mais carismática do PCP que foi durante muitos anos Secretário-Geral do seu partido.
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            O romance Até amanhã, Camaradas é, antes de mais nada, um documento histórico da resistência portuguesa contra a ditadura.
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            O núcleo fundador desta narrativa é, porém, a vida interna do PCP.
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            Centra-se, sobretudo, nos militantes clandestinos e nos seus problemas políticos, de segurança, de comunicação com as bases, além das vivências pessoais, quer sentimentais, quer de sobrevivência e de relacionamento com os camaradas e com o exterior.
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            A acção passa-se nos anos difíceis da Segunda Guerra Mundial e durante as lutas populares que o PCP organizava no Vale de Tejo por volta de 1944.
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            Inicia-se com a chegada de um jovem, de bicicleta, num dia de chuva torrencial, a uma aldeia recôndita, procurando um tal Manuel Rato. Ele é, segundo se apresenta, o sapateiro de Santarém que, passando caminhos esconsos e lamacentos, subindo e descendo vales, prossegue a viagem, apesar da intempérie.
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            Encontrando Manuel Rato, mostra-lhe a senha (um pedaço de papel com o desenho de uma planta de sapato) a que se iria ligar a outra metade que Manuel Rato também possuía, confirmando assim a sua autenticidade.
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            Eles falam da pobreza da aldeia, da falta de trabalho, da exploração dos camponeses, dizendo-lhe Manuel Rato que, em breve, iria trabalhar para as minas.
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            Depois de sua mulher lhe oferecer um caldo quente com hortaliças e uma broa com toucinho, passaram parte da noite a conversar. Manuel Rato, a mulher e Joana, a filha, que, apesar de muito novinha se interessava por tudo e queria ouvir histórias sobre a União Soviética e sobre o trabalho que estavam a realizar.
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            Mas este jovem, de rosto duro e enérgico, tem de prosseguir a sua longa caminhada em busca de outros camaradas a fim de criar a ligação entre este sector e a organização.
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            A chuva persegue-o e é molhado até aos ossos que chega a uma taberna, numa povoação vizinha, onde pede um quarto de pão, um queijo fresco e um copo de vinho.
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            Em seguida, ele parte para a cidade onde irá ter lugar uma reunião do Comité Regional, na qual se discutirá sobre as praças de jornas, em que os trabalhadores eram contratados. Uns consideravam que deviam pôr fim a esses vestígios de servidão, onde os patrões e manajeiros ofereciam jornas «como quem oferece numa feira o preço do gado.»
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            Mas a ordem do Comité Central, veiculada por Vaz, o rapaz da bicicleta, era continuar as praças, porque aí estavam todos juntos e podiam fazer o seu preço. Enquanto que se estivessem separados, a exploração sobre eles individualmente seria maior. Marques, que estivera contra esta decisão, enfrentando o olhar fixo de Vaz, disse-lhe:
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            “Os Camaradas do Comité Central estão lá muito, muito em cima e nem sempre são informados”.
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            Uma hora mais tarde, já Vaz se encontrava a léguas de distância, sentado no escritório de um camarada advogado. Vaz encontrava-se muito cansado e o advogado insistia na crítica ao trabalho do Partido, ao jornal que considerava pobre, sem artigos de divulgação doutrinária e, por vezes, com erros.
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            E quando Vaz lhe pergunta se ele tinha elementos sobre o caso das negociatas do Governador Civil com a Câmara, ele responde com evasivas, que era um caso muito delicado.
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            Também se esquecera de comprar o Diário do Governo, conforme lhe tinha sido pedido.
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            Depois, à pergunta se poderia dormir ali no seu escritório ou na casa dele, o advogado fica muito agitado e acaba por dizer que era muito perigoso ficar ali e que, em casa, a sua família era muito burguesa e não compreenderia aquela intromissão.
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            Vaz parte e, por momentos, vem-lhe à memória a família modesta de Manuel Rato, recebendo-o naquela casa pobre, no entanto, com tanto carinho. E é neste clima, por vezes, mesmo de desconfiança entre os camaradas, de vidas projectadas para a clandestinidade, onde os esperaria uma vivência muito dura, de sobressalto em sobressalto, de privações de toda a ordem, até de comida, que se desenrola a acção.
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            Vaz faz-se à rua debaixo de chuva. Já era tarde e não podia ir procurar uma pensão que despertaria suspeitas. Nessa semana passara já duas noites em branco, fizera centenas de quilómetros de bicicleta, andara léguas e léguas a pé, comendo apenas uma pequena refeição por dia. Agora abrigava-se debaixo dum aqueduto, o chão era um charco e o frio penetrava-lhe no corpo. Só de manhãzinha, tiritando de frio e de fraqueza fora procurar outro camarada, o Pereira.
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            A casa dos Pereiras tornara-se primeiro um “ponto de apoio” do aparelho clandestino e, depois, quando Pereira se tornou responsável da organização local, o ponto de ligação dos controleiros com a organização. 
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            Aí vai encontrar a comida quente de que necessitava, uma cama e o calor humano.
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            Destes episódios ficamos a conhecer a vida dos controleiros, andando quilómetros a pé ou de bicicleta, passando dias sem dormir e quase sem comer. Somos igualmente espectadores da vida de privações dos camponeses e dos operários que vão ter o apoio do partido nas suas reivindicações. No meio do romance, o PCP lidera greves e manifestações que apanham as autoridades desprevenidas, mas logo seguidas de brutal repressão que conduz os protagonistas à prisão e mesmo à morte. É o caso da filha de um militante que, numa greve, se coloca à frente do pai para o proteger da brutalidade da polícia que lhe está a bater e é morta por uma bala do agente. 
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            E, quase no final da obra, a morte a tiro de um dos militantes mais activos.
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            As três personagens que mais se evidenciam neste romance são Vaz, Ramos e Maria. Pela faceta austera de Vaz, tem-se considerado que será uma identificação desta personagem com Álvaro Cunhal, embora muitas das características de Ramos sejam também compatíveis com a personalidade do autor.
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            Até amanhã, Camaradas tornou-se através destes anos uma epopeia do PCP, onde o passado épico eleva a heróis os seus militantes, protagonistas da acção do romance.
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            Esta obra foi transposta para o cinema numa série que a SIC reproduziu em dois episódios de uma forma magistral. O romance encerra, com efeito, qualidades a nível dos planos da acção e do seu dinamismo que se adaptam à técnica cinematográfica.
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            A dramaticidade dos acontecimentos e o carácter épico e ético conferem a esta obra a qualidade artística e humana que é o produto de um autor que dedicou toda a sua vida a um ideal, sem equívocos ou incoerências.

                       
                                                                                      Elsa Rodrigues dos Santos 
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atomicorecp | 27 de Abril de 2008 | 11 utilizadores que gostaram deste vídeo, 0 utilizadores que não gostaram deste vídeo
Portugal, 1944. Num país oprimido por uma ditadura retrógrada, servida por uma polícia política implacável (a PVDE), há quem resista e se organize para mobilizar o povo para a luta pelo pão e pela liberdade. Mesmo que isso lhe possa custar a prisão, torturas, ou até a vida. Pessoas como Vaz, Ramos, António e Paula militantes e funcionários do Partido Comunista, que desenvolvem a sua acção na clandestinidade, reorganizando o Partido nas zonas dos arredores de Lisboa e do ribatejo, ao mesmo tempo que preparam uma grande jornada de luta, com greves e marchas contra a fome. Esta série, adaptada da obra homónima de Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), mostra o dia-a-dia dessa luta clandestina, vivida por dentro, no terreno. Os seus personagens são um retrato dos homens e das mulheres que dedicaram as suas vidas a essa luta. Dos seus ideais, das suas paixões e dos seus sacrifícios. Dos que mostraram fraqueza e dos que deram a vida pelo que acreditavam.


Até Amanhã, Camaradas
- Filme de Joaquim Leitão com António Alcântara, Pedro Alpiarça, Amélia Corôa, São José Correia, Carlos Curto, Juana Pereira da Silva, Pedro Efe, Cândido Ferreira, Ivo Ferreira, António Filipe, Sara Graça, Adriano Luz, Paula Só, Luís Soveral, Adelino Tavares, Francisco Tavares, Leonor Seixas, Gonçalo Waddington.
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Autor: diasferreira 
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Ilusionismo Quadrilátero

ILUSIONISMO
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* Victor Nogueira .
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Ele há um tempo p’ra tudo na vida
Cantando hora, minuto, segundo;
Por isso sempre existe uma saída
Enquanto nós estivermos neste mundo.
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Há um tempo para não fenecer
Há mar, sol, luar e aves com astros
Há uma hora p'ra amar ou morrer
E tempo para não se ficar de rastos.
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P'ra isso e' preciso sabedoria
Em busca dum bom momento, oportuno,
Com ar, bom vinho, pão e cantoria,
Sem se confundir a nuvem com Juno.
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1991.08.11 - SETUBAL