Domingo, 7 de Dezembro de 2008
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O FOGO E AS CINZAS & TEMPO DE SOLIDÃO - MANUEL DA FONSECA
Manuel da Fonseca, um dos maiores representantes do neo-realismo português, além de exímio contista, destaca-se também como romancista (“Cerromaior” -1943, “Seara do Vento” - 1958) e poeta (“Rosa dos Ventos” - 1940, “Planície” - 1942). É como contista que iremos analisá-lo a seguir.
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Ao contrário das personagens de Miguel Torga, que surgem do nada e tornam-se densas e humanas, as personagens dos contos de Manuel da Fonseca são mais elaboradas, mais estruturadas, dificilmente surpreendem dentro do imprevisto. As personagens adquirem uma personalidade psicológica que evoluí conforme o meio social em que se encontra, mantendo sempre uma estrutura equilibrada, de onde a razão vai de encontro ao que esperamos da vida, do quotidiano, seja ele vivido no campo ou na cidade. Cada personagem ficcional de Manuel da Fonseca parece a reunião de três indivíduos reais, ou seja, o autor transporta para a ficção duas ou três personalidades reais, fazendo assim, um trabalho de elaboração, onde a história contada tende a um clímax esperado, nunca, ou quase nunca, espontâneo como vimos nos contos de Miguel Torga. Aqui analisaremos os livros de contos “O Fogo e as Cinzas” e “Tempo de Solidão”, duas obras de tempos diferentes da história portuguesa. O “O Fogo e as Cinzas“ é o retrato das pequenas vilas e aldeias do interior português, personagens típicas dessas terras, que compõem o conjunto de uma sociedade secular. “Tempo de Solidão” retrata a cidade da grande, a urbanidade e a transformação dos costumes, o homem do interior migra para a grande cidade, muitas vezes a perder-se diante do anonimato urbano.
O Fogo e as Cinzas, Retratos do Interior Português
Ao analisarmos os contos do livro “
O Fogo e as Cinzas” (19ª edição - Caminho - 1992), vamos encontrar semelhanças com os “
Contos da Montanha” de Miguel Torga. Tal qual Torga, estes contos foram escritos durante o Estado Novo, tendo sido publicados pela primeira vez em 1951. Para compreendermos melhor a época, os contos estão situados numa Europa pós-guerra, onde os primeiros anos da guerra fria e da afirmação nuclear são os principais problemas. Enquanto assistimos ao enterro dos nacionalismos extremados, o Nazismo na Alemanha e o Fascismo na Itália, a Península Ibérica vive sob as ditaduras de Franco em Espanha e de Salazar em Portugal. É na ditadura de Salazar, voltada para as colônias africanas, numa política totalmente isolada do resto da Europa, fechada às mudanças intelectuais do mundo, que surge os contos aqui analisados. Neles vamos sentindo uma desolação das personagens que pouco a pouco. vêem surgir lentamente um progresso nas vilas e nas aldeias. Com este progresso acontece a perda de certos costumes, o eterno olhar saudosista do português sobre o que evoluí e o que se perde com tal evolução.
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Manuel da Fonseca faz desses contos sutis viagens através de Troia, desce por Sines, Milfontes, guia-nos até o Alentejo, indo desembocar no Algarve. Ao contrário de Torga, que faz das pedras transmontanas o cenário das suas personagens, Fonseca faz de várias regiões personagens também do campo, mas não só a gente que trabalha na terra, a gente humilde e sem esperança, aqui surge também donos de terras, com todos os seus caprichos e passionalismos, como no conto “Amor Agreste", onde força e paixão assumem um voluntarismo subtil, numa tensão mista de amor e desejo:
“António de Alba Grande, que tirara a namorada de dentro da golpelha, livrou-a da mordaça e da corda que lhe tolhia os membros. Afastou-se um pouco para o lado.“
Também encontramos trabalhadores típicos das vilas como os bombeiros voluntários, uma profissão muito respeitada e quase heróica no interior português. No conto “O Fogo e as Cinzas”, são as memórias da personagem descritas na primeira pessoa, que nos conduz através dos acontecimentos que mudaram a sua vida. Por duas vezes o fogo na cidade alterou a vida da personagem. A primeira vez, quando a namorada foi salva, mas quando saiu nos braços do bombeiro quase nua, o narrador jamais aceitou a vergonha do fato, deixando-se dominar pelo machismo e preconceitos das aldeias:
“E poderia eu ter casado com Antoninha, depois de todos a observarem de barriga ao léu? Ainda agora coro ao pensar que estive quase, quase a fazê-lo.”
Também vamos encontrar os tropas de “Noite de Natal”, os mendigos, o adolescente que abandona a infância de “O Retrato”, enfim, as personagens mais diversificadas e típicas, que constroem um realismo lusitano.
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Ao olharmos para os contos de Manuel da Fonseca, vamos encontrar as personagens normalmente inseridas em determinados locais , num largo, num café, numa casa, cujas ações das mesmas vão sucedendo como um cotidiano bucólico, um marasmo perene do dia a dia. Primeiro os costumes vão sendo descritos para que tenhamos uma visão perfeita do local focalizado, do espaço, do ambiente, onde as personagens surgem como visitas, lentamente tomam forma e adquirem o controlo das ações, sobressaindo-se ao cenário. O tempo é sempre o momento de contar uma história, pode ser uma noite na taberna, um dia num monte alentejano, alguns anos no largo de uma cidade, mas sempre de acordo com a evolução da visão das personagens diante da vida. Assim, as marcas da transformação dos tempos e da paisagem, vão sendo mostradas diante da descrição da sensação das personagens. É o progresso que chega e leva embora a paisagem humana:
“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.”
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Na descrição acima, no conto “
O Largo”, ao contrário das personagens de Torga, onde parecem
submergirem da paisagem agreste, as personagens de Manuel da Fonseca vêm em primeiro plano. O traço psicológico é evidenciado a cada parágrafo, as transformações do ambiente e do cenário vão sendo analisados por determinada personagem, que psicologicamente acompanha as mudanças do ambiente e, por fim, a mudança de atitudes, ou seja, elas evoluem mediante o exterior:
“O comboio Matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina fraco e repontão. O Estroina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. o Má Raça, rangendo os dentes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavrador de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral. Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano preto.”
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Tempo de Solidão, Uma Urbanidade Saudosista
Ao analisarmos os contos de “
Tempo de Solidão” (3ª edição - Caminho -1985), vamos encontrar um Manuel da Fonseca totalmente urbano, perdido no progresso rápido da tecnologia, inserido no dia a dia da cidade e nas latitudes suburbanas ao redor dos grandes centros. Devemos analisar com a visão da mudança dos tempos, pois o conto “
Tempo de Solidão” foi editado pela primeira vez em 1969, pelos Estúdios Cor. Nele vamos encontrar a solidão de um casal, separado pelo dia a dia, pelo trabalho na cidade. Os despojos do dia, os acessórios do cotidiano, a casa no subúrbio, a creche do filho, o telefone, a secretária, os escritórios; enfim, um mundo de transição entre o fim do regime salazarista e das mudanças contidas pré-1974. Nota-se perfeitamente o azedume de não ver nada além do marasmo, a tristeza de viver um tempo de estio. As personagens são tomadas por uma desolação do quotidiano, por um saudosismo dos tempos dos cafés do interior, da vida sem o metropolitano, da cidade sem o campo. Silvia e Guilherme temem o dia a dia, a opressão da nova vida urbana que vivem, o estar juntos, mas distanciados pela correria dos dias. Trabalhos separados, camas juntas, o encontro no fim da noite, os desejos do dia a dia. Desejos
voyeuristas e dissimulados. A vontade de quebrar com o estabelecido, de fugir da rotina, o massacre das obrigações, as culpas do silêncio de cada um, por fim os corpos que se desejam no fim da noite, fazendo do momento de prazer a fuga de tudo:
“A princípio confuso, depois nítido, sobre os ombros de Guilherme, e apagando-lhe as feições, surge aos olhos de Sílvia a cara do “operário”, tal como ela a sentira, no consultório: calma, forte, repassando-a de serenidade. No mesmo instante, sobre o vidro embaciado da janela do comboio, projecta-se, aos olhos de Guilherme, como imagem de perdida felicidade, o rosto fresco e jovem da mulher entrevista no café. “
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Nestes contos, também nos deparamos com a venda das ideologias em nome da posição social e do trabalho. A personagem de “
Uma Boa Passagem de Ano” é o exemplo do homem que para ter uma subida social dentro da empresa, despojou-se de valores pessoais, intimistas, perdendo um certo orgulho próprio.
Apesar de querer estar em determinada posição social, é claramente repelido pelos outros, quando ele próprio repele àqueles que não pensam como ele ou, não sobem nas esferas sociais. Melancolicamente descobre que a sua ascensão é uma farsa, que apesar das mudanças, continua a admirar o amigo que mais pensa desprezar, e despreza a si próprio:
“Ria tanto que me agarrei à barriga. E ao chegar ao carro ainda ria. “O Dimas não percebe”, pensava eu, e ria. “Cada um no seu lugar”, ria eu, de olhos arrasados de lágrimas. “Sim - ofendidos, mas curvados!” ”
Traçando um pouco o retrato do escritor famoso que não gosta de dar entrevistas, Manuel da Fonseca retrata em “A Entrevista” o modelo ideal do novo homem que viria com os anos setenta, ou seja ,o jovem pobre do interior, que para sobreviver trabalhava em vários empregos e custeava os estudos. Aqui ainda o reflexo do salazarismo, em que a luta, o trabalho, a humildade, fazem da componente psicológica do português o estereótipo do fim do Estado Novo:
“-Uma parte, na província, outra parte, aqui, na cidade. Um homem e uma mulher que passam tormentos para que o filho tire um curso. Querem elevá-lo à classe beneficiada pelo dinheiro. É assim que eles pensam que se deve fazer. Mas, na cidade, há uma rapariga que pensa de maneira diferente. E o rapaz, o tal que anda a tirar o curso à custa da miséria dos pais, descobre o erro em que vive. É isto o romance...”
Manuel da Fonseca , é aqui mais melancólico do que nunca, parece muitas vezes fugir do tempo atual e mergulhar no saudosismo de outrora. Saudades da juventude ou do tempo em que Portugal era um país de brandos costumes, com uma guerra colonial nas costas e cinqüenta anos de ostracismo cultural trancados nos calabouços da história? Saudades portuguesas.
Manuel da Fonseca
Manuel Lopes Fonseca, escritor do neo-realismo português, nasceu em 15 de outubro de 1911, em Santiago do Cacém, região do Alentejo.
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Manuel da Fonseca deixou o Alentejo para concluir os estudos em Lisboa. Mas é o Alentejo com as suas aldeias e vilas, que vai povoar o universo do escritor ao longo de sua obra, que mais tarde acaba por se tornar urbana.
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Militante do Partido Comunista Português (PCP), esta militância e escolha ideológica refletir-se-iam claramente na composição psicológica das personagens e na sociedade que as cercava. O escritor fez parte do grupo do Novo Cancioneiro, fazendo da sua obra uma importante intervenção social e política.
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Manuel da Fonseca chegou a fazer a Escola de Belas-Artes, deixando registros dos seus traços em retratos de amigos, com José Cardoso Pires, mas nunca se sobressaiu como artista plástico.
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Manuel da Fonseca morreu em 11 de março de 1993, em Lisboa, aos 81 anos de idade.
OBRAS:
Poesia
1940 – Rosa dos Ventos
1942 – Planície
1958 – Poemas Dispersos
1958 – Poemas Completos
Contos
1942 – Aldeia Nova
1951 – O Fogo e as Cinzas
1968 – Um Anjo no Trapézio
1973 – Tempo de Solidão
Romance
1943 – Cerromaior
1958 – Seara de Vento
Crônicas
1989 – Crônicas Algarvias
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publicado por virtualia às 19:00
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http://virtualia.blogs.sapo.pt/14198.html
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Dados Pessoais
Nome
JEOCAZ
Apelido
LEE-MEDDI
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