Tempo em Setúbal

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Tempestade - Ferreira de Castro

Monday, October 30, 2006

De passagem #5 - Do «Pórtico» de A TEMPESTADE (1940)

Os homens, na sua maioria, não se compreendem uns aos outros. Aferram-se ao seu egoísmo, a reacções primitivas, a ideias feitas, a prejuízos remotos, uns; entregam-se à submissão, os outros, os mais fracos. E até alguns dos que pareciam melhor dotados para colaborar na obra de compreensão humana que é preciso dar ao Mundo, costumam arrepiar caminho antes de findar a jornada. Depois de terem esgotado mais de metade da vida a descer dos deuses e a acreditar nos homens, empregam o resto do tempo, com o mesmo facciosismo com que, até há pouco, faziam o contrário, a desprezar os homens e a adorar os deuses.
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A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª - Editores, 1980.

Uma capa de Jorge Barradas

A Tempestade
Lisboa, Guimarães & C.ª, 1940
 

Monday, October 15, 2007

De passagem - Do «Pórtico» de A TEMPESTADE (1940)

Na tarde em que os seus e os meus olhos se estenderam por vastos horizontes, desde a misteriosa pirâmide de Sakkara, pelos arqueólogos considerada o mais antigo monumento que do esforço dos homens existe sobre a terra, até onde, lá na lonjura, o deserto parecia ligar-se com o céu em fogo, nós sabíamos que essa ânsia de «ser menos infeliz» lavrava o Mundo inteiro. Ali, no areal ardente e infindo, dominava uma paz imensa, que dir-se-ia entranhada no Tempo, nas dunas, nas tamareiras que nenhuma brisa bulia e sobre as quais os próprios abutres haviam cerrado as asas. Mas esta paisagem extática agigantava, por contraste, no nosso espírito, o surdo rumor das lutas que nós sabíamos travarem-se em todos os continentes, as lutas que hão-de caracterizar o nosso século. Foi então que eu imaginei escrever, com os meus pobres recursos, uma «Biografia do Século XX», a biografia da grande epopeia que ia no Mundo, e da qual todos nós fomos de certa maneira, testemunhas oculares.
A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980.

Thursday, November 13, 2008

de passagem - do «Pórtico» de A TEMPESTADE (1940)


Era e é minha opinião que a crónica da nossa época, que, um dia, se fará sob o pó dos tempos e de esmaecidos papéis, não terá o valor de vida viva, de víscera palpitante, que teria a crónica feita agora, sobre a terra que ainda cheira a molhado -- e molhada, tantas vezes, com o sangue de quase todos nós.

A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980.


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Monday, March 09, 2009

de passagem - do «Pórtico» de A TEMPESTADE (1940)

Meu amigo:
Há anos, o acaso reuniu-nos num hotel do Cairo e você, afectuoso sem grandes gestos, amável sem palavras farfalhantes, uma constante sombra de melancolia no sorriso e nos olhos, quis servir-me de piloto durante uma das minhas peregrinações na terra egípcia já sua conhecida.
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Ferreira de Castro, A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980.

Saturday, April 18, 2009


Preconceito e orgulho em A Tempestade de Ferreira de Castro (1)

Publicado em Nova Sintese, n.º 2/3, Vila Franca de Xira, Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo e Campo das Letras, 2007
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Publicado em 1940, pela Guimarães & C.ª, A Tempestade foi desde logo encarado por Ferreira de Castro como um romance de recurso, tal como sucedeu com os livros de viagens, em face dos constrangimentos censórios de que o seu trabalho foi vítima na segunda metade da década de 1930.
(continua)


Monday, March 15, 2010

Preconceito e orgulho em A Tempestade, de Ferreira de Castro (2)

O escritor tinha na gaveta uma obra ficcional cujo cenário era a grande insurreição anarco-sindicalista nos campos da Andaluzia e na cidade de Sevilha, em 1931, cujo surto inicial ele testemunhara como enviado especial de O Século. Trata-se de O Intervalo, escrito em 1936, e editado somente em 1974, inserido em Os Fragmentos. Também uma peça de sua autoria, redigida a pedido de Robles Monteiro para o Teatro Nacional, e que abordava o tema da pena de morte, a propósito da recente condenação do alegado raptor e assassino do filho do piloto-aviador Charles Lindbergh, fora igualmente censurada por despacho governamental. Seria publicada cerca de sessenta anos depois, em 1994. Foi por esta razão que Castro se dedicou, «com um desalento imenso»(1) à literatura de viagens.
Ferreira de Castro, Os Fragmentos, 2.ª edição, Lisboa [1974], p. 78.

Nova Síntese, n.º 2-3, Porto, Campo das Letras, 2007/8, p. 49.
 
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Saturday, April 18, 2009

Friday, June 19, 2009

de passagem - A TEMPESTADE (1940)

[do «Pórtico»]
Um vaporzito, com graciosidade de gaivota e calentura de forno, largou de ao pé da Kars-en-Nil e, apitando aqui e ali, que o tráfego fluvial era grande em frente da cidade, começou a subir o rio sagrado.
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Ferreira de Castro, A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, 1980.

 

Friday, September 18, 2009

de passagem - A TEMPESTADE (1940)

[do «Pórtico»]
Nas margens do Nilo, o felá, desgraçado campónio, trabalhava a gleba, no país onde a miséria e a servidão imperam e o chicote do árabe forte é, ainda hoje, um argumento contra o patrício débil.
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Ferreira de Castro, A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980.

 

Tuesday, December 08, 2009

de passagem - A TEMPESTADE (1940)

[do «Pórtico»]
A meio da tarde, o barco, com novo silvo infantil, atracou em Bedrachein. Dali nos dirigimos para Menfis, cujos remotos túmulos a minha curiosidade esquadrinhou e, depois, fatigados da andança, buscámos sombra sob as tamareiras que debruam a antiga capital do Egipto. À nossa esquerda havia, esparsos, miseráveis cubos negros, feitos de barro e de excrementos -- as habitações normais dos camponeses egípcios.
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Ferreira de Castro, A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980.


Friday, May 14, 2010

de passagem - A TEMPESTADE (1940)

[do «Pórtico»]
À direita, divisava-se, longinquamente, a pirâmide de Sakkara, e, na nossa frente, estendia-se, imenso, o deserto da Líbia.
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Ferreira de Castro, A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarâes & C.ª, 1980.

 

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Monday, November 15, 2010

de passagem - A TEMPESTADE (1940)

do «Pórtico»
Nesse tempo, em contraste com o silêncio que nos cercava, ia, no Mundo, grande inquietação, fragor de aspirações a realizar, lutas por uma existência melhor, mais consoante o direito de cada qual a viver. As bestas de Apocalipse não tinham ainda largado, de novo, das suas estrebarias de antanho, o que iria acontecer em breve; mas uma outra ansiedade, rútila esperança que deve ter existido no coração dos deserdados desde que, sobre a terra, medrou a primeira injustiça, envolvia todo o Planeta. Os jornais do Cairo, lidos de manhã, não falavam de outra coisa.

Ferreira de Castro, A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980. 


Sunday, July 12, 2009

Literatura, Artes e Identidade Nacional -- Do Modernismo à Actualidade (2)

Como já tivemos oportunidade de escrever, um romance como Sinais de Fogo (1979) não foi, senão na sociedade livre em que se publicou. O que nos remete para a questão, por vezes irritantemente académica -- tal como o foi a do nosso feudalismo / senhorialismo, tal como o é a do nosso fascismo / autoritarismo --, que consiste no averiguar estatístico da existência, ou não, de obras-primas quedadas na gaveta, mercê de uma censura de meio-século. O crítico solerte, com argúcia de contabilista, deduzirá que muito poucos textos literários -- quase nenhuns --, vindos entretanto a lume, gozarão desse estatuto. Quando a interrogação deveria ser esta: quantos grandes romances, poemas, ensaios deixaram de ser escritos por causa da censura? (2) Houve, contudo, casos singulares, o mais notável dos quais terá sido o de Alexandre Pinheiro Torres, cuja integral produção romanesca até à data (cinco romances, entre A Nau de Quixibá, publicado em 1977, e A Quarta Invasão Francesa, de 1995) conheceu primeiras versões nos anos sessenta. (3)

(2) Ver uma aproximação a este assunto, conquanto focalizada essencialmente num autor: Ricardo António Alves, «Ferreira de Castro: Um escritor no país do medo», in Taíra, n.º 9, Crelit, Grenoble, Université Stendhal, 1997.
(3)Ver Eunice Cabral, «A gaveta prodigiosa», in JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 677, de 25 de Setembro de 1996, pp. 38-39.
Literatura, Artes e Identidade Nacional -- «Do Modernismo à Actualidade», separata das Actas dos 3.ºs Cursos Internacionais de Verão de Cascais - 1996, Cascais, Câmara Municipal, 1997, pp. 183-184.
(continua)
 
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Ilusionismo Quadrilátero

ILUSIONISMO
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* Victor Nogueira .
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Ele há um tempo p’ra tudo na vida
Cantando hora, minuto, segundo;
Por isso sempre existe uma saída
Enquanto nós estivermos neste mundo.
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Há um tempo para não fenecer
Há mar, sol, luar e aves com astros
Há uma hora p'ra amar ou morrer
E tempo para não se ficar de rastos.
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P'ra isso e' preciso sabedoria
Em busca dum bom momento, oportuno,
Com ar, bom vinho, pão e cantoria,
Sem se confundir a nuvem com Juno.
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1991.08.11 - SETUBAL