Tempo em Setúbal

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O tempo na Poesia de José Miguel Silva



José Miguel Silva
< voltar a José Miguel Silva
Não é tarde

O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes
eu fecho mais a porta.

Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro
funciona! Poderoso combustível
é o corpo. Acende deste lado.

Ainda não é tarde, foi agora anunciado
pela rádio, são dezoito e vinte cinco.
Respira-nos, repara, a ilusão

de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despe
vai perdendo o nosso número de telefone.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
& etc.
.
 
*****
.
Não sei se são os trinta anos

Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco, 
figurava o paraíso como um quarto vazio, 
onde o silêncio de um Iivro ressoava 
pela noite dentro. Protegia dos amigos 
minhas horas, dos irmãos, dos apelos 
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado ,
de trincheiras, distante de pracetas, 
acenos, convites pra jantar. 
O lamento era o meu hobby preferido. 

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
& etc. 
.
*****
.
Nocturno

A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.
Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a noite
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
& etc. 
.
*****
.
Penélope escreve

É mais que certo: não sinto a tua falta.
Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis,
a reler as cinco cartas que me foste endereçando
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas
que deixaste no quintal. Sempre só e sem
carpir o meu estado (porque não me fazes falta),
pus o disco da Chavela que me deste no Natal
e comecei a preparar o teu prato preferido.
Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso
abri uma garrafa de maduro e não me custa
confessar-te que não sinto a tua falta.
Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar
dois convites pra sair (aleguei androfobia)
e estou neste momento a recortar a tua imagem
(não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois,
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
a inábil idiota que deixou que tu te fosses.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
& etc.
.
*****
.
Quatro

Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.

Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.

Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamávamos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.

O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico. 

Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.



José Miguel Silva
Vista para um Pátio
seguido de
Desordem
Relógio d´Água
2003
.
*****
.
 
 

Sem comentários:

Ilusionismo Quadrilátero

ILUSIONISMO
.

* Victor Nogueira .
.
Ele há um tempo p’ra tudo na vida
Cantando hora, minuto, segundo;
Por isso sempre existe uma saída
Enquanto nós estivermos neste mundo.
.
Há um tempo para não fenecer
Há mar, sol, luar e aves com astros
Há uma hora p'ra amar ou morrer
E tempo para não se ficar de rastos.
.
P'ra isso e' preciso sabedoria
Em busca dum bom momento, oportuno,
Com ar, bom vinho, pão e cantoria,
Sem se confundir a nuvem com Juno.
.
1991.08.11 - SETUBAL